Olá!
Depois que me mudei para Londres e comecei a conhecer a cidade e conversar com amigos daqui, cheguei a uma conclusão fácil e (como toda generalização) possivelmente equivocada: a culinária não é um ponto forte do país.
E isto não é algo só meu! Se você sair para perguntar a pessoas não nativas por Londres, a maioria vai afirmar realmente isso: não há uma culinária típica muito forte por aqui! Eles comeriam muita coisa baseada na culinária indiana e só.
Só que todo povo faz algo para comer, geralmente típico da região, então algo me inquietava: britânicos não podem viver apenas de fish & chips, que eu já citei no guia fácil sobre restaurantes em Londres.
Mas se eles precisam ter alguma culinária típica, o que seria?
Comecei então um papo rápido com amigos de trabalho e eles me ajudaram a levantar uma lista de itens que eles consideram tipicamente britânicos.
Por que a fama ruim?
Entre os tópicos que surgiram, uma pessoa indicou um link interessante, que eu gostaria de citar por aqui: Dining After ‘Downton Abbey’: Why British Food Was So Bad For So Long. Em tradução livre, seria algo como: “Comendo após ‘Downton Abbey’: por que a culinária britânica foi tão ruim por tanto tempo”.
Contexto: Downton Abbey é uma série que se situa no início do século passado, começando por volta de 1912. Aborda um pouco da aristocracia britânica. Diz-se que a rainha da Inglaterra adorava assistir à série e avaliar o que era historicamente fiel ou não.
O texto, basicamente, cita que a culinária da região ganhou essa fama ruim no século XX devido a uma série de fatores, mas antes não era assim.
No período conhecido como “Edwardiano” (em homenagem ao rei Edward VII), entre 1901 e 1910, comer na Inglaterra era tido pelas classes mais abastadas como uma forma de demonstrar status.
Dessa forma, havia um grande contingente de funcionários que se especializaram no ramo culinário, trabalhando para famílias de classe média ou mais endinheiradas.
Só que o século XX trouxe uma série de desafios, como a Primeira Guerra Mundial, que retirou destas famílias boa parte dos funcionários do setor. Eles passaram a defender o país nos campos de batalha e muitos, obviamente, nunca retornaram.
Antes disso, a própria Revolução Industrial, com sua onda de produtos industrializados, já havia deixado a culinária sofisticada nas mãos dos mais privilegiados, mas as duas grandes guerras prejudicaram ainda mais, pois tiraram do último grupo que ainda mantinha essa cultura os suprimentos e os ânimos para este tipo de ritual, diferente do que ocorreu na França e na Itália, por exemplo, que conseguiram manter ainda muito de sua cultura na área.
O racionamento de alimentos, por exemplo, ainda segundo o texto do The Salt (citado acima), somente terminou por volta de 1954, alguns anos após o término da Segunda Guerra Mundial, dificultando fortemente a propagação da culinária no Reino Unido.
Hoje, porém, isto já não representa a realidade…
Por mais que falte algum conhecimento em relação a isso fora daqui, produz-se muita coisa típica nas cozinhas britânicas.
Diante deste cenário injusto, tomo a liberdade de ajudar a vencer este tabu e apresentar aquilo que meus amigos e colegas de trabalho me apresentaram do que é típico das terras de Vossa Majestade Rainha Elizabeth II.
Café da manhã / café da tarde
Beans on toast: em tradução livre, “feijões na torrada”. Basicamente, um pouco de feijão, que aqui vem normalmente em um molho de tomate, servido sobre torradas. Geralmente é apresentado como parte do Full English Breakfast.
Full English Breakfast: contém, geralmente, os seguintes ingredientes: salsichas, black pudding (feito do sangue suíno), bacon das costas do porco, ovos fritos, tomate grelhado, cogumelos (geralmente caramelizados), torradas e os feijões típicos com molho de tomate. É um prato enorme! Para acompanhar, um chá é boa pedida para eles.
Marmite: uma pasta à base de leveduras fermentadas, com sabor e cheiro bem fortes. Na Austrália, é chamado de Vegemite. Marmite, aliás, é o nome da marca britânica. Como a própria empresa já disse, é algo que você ama ou odeia, tamanha sua peculiaridade. Come-se geralmente junto com manteiga, aplicando-se em torradas.
Cream tea: diferente do que o nome sugere, não é um “chá cremoso”. Trata-se de chá (que pode ser tomado com leite) e metades de scone (bolinho típico) cobertas de clotted cream (creme espesso à base creme de leite) e geleia de morango (tipo mais comum, mas também de amora e outras variações).
Bread & butter pudding: uma espécie de “pudim de pão” feita principalmente com fatias de pão, manteiga, açúcar, ovos e leite (além de elementos cítricos), no forno.
Pratos salgados
Fish & chips: se você vier à cidade de Londres, precisa conhecer! Prato simples, com poucos ingredientes, mas que é MUITO conhecido e tradicional daqui. É, literalmente, um filé de peixe coberto envolto por uma casquinha de farinha e ovo/água e frito, acompanhado de batata frita e (opcionalmente), ervilhas, sejam elas amassadas ou apenas cozidas inteiras. Teria surgido como alimento barato muito consumido pelos pescadores, mas hoje não é dos pratos mais baratos, tamanha sua popularidade.
Chicken tikka masala: ao contrário do que poderia se deduzir, o prato não é indiano. Basicamente, consiste em pedaços de frango assado e marinado em um molho cremoso à base de curry (ou carril, como se diz em Portugal).
Pie & mash with liquor: tradicionalmente, a torta (pie) era feita com enguia, mas hoje é geralmente preparada com carne moída. Para acompanhar, batata estilo purê e o liquor, um molho que tradionalmente é baseado em enguia e salsinha, mas que hoje já não costuma ter o peixe.
Pasty: uma espécie de torta, geralmente em formato parecido com o das empanadas argentinas ou pastéis assados. A variação mais comum é a Cornish pasty, ou seja, pasty da Cornualha, um condado da Inglaterra. Geralmente se recheia com carne e/ou vegetais, mas nunca duvide da criatividade dos britânicos. Como me contaram durante minha pesquisa, você pode colocar quase qualquer alimento dentro da pasty e assá-la.
Scotch eggs: ovos cozidos, cobertos com carne de salsicha e uma película à base de farelo de pão. Podem ser assados ou fritos.
Lancashire hotpot: basicamente, um “cozido” de carne de cordeiro e cebola, coberto com fatias de batata. É assado em temperatura baixa, em recipientes de cerâmica ou similares.
Kedgeree: mais consumido como café da manhã, tem origem no khichri indiano. Na versão britânica, consiste em arroz de curry, com peixe defumado, ovos cozidos, suco de limão e salsinha.
Haggis: sabe a buchada? Basicamente, haggis são uma versão escocesa do que é tão amado no Nordeste do Brasil. Cá no Reino Unido, o prato consiste em usar o estômago (limpo) da ovelha como “recipiente” para uma mistura de coração, fígado e pulmão moídos, dando aquela “rendida” na quantidade com a adição de aveia, cebola, temperos diversos, pimenta e “sebo” (aquela gordura típica de alguns animais). É o prato nacional da Escócia e bastante controverso (pela composição).
Jellied eels: em tradução livre, “enguias gelatinosas”. Prato originado em Londres por volta do século XVIII, quando as enguias eram abundantes no rio Tâmisa. Basicamente, você fatia as enguias, cozinha tudo em um caldo de ervas e deixa os pedaços esfriando, até que eles gerem alguns blocos gelatinosos em volta dos pedaços. Comumente servido com pie & mash, que citei acima.
Stargazy pie: um tipo de pasty no formato de torta, elas possuem um semblante peculiar: recheadas com uma espécie de sardinha, o peixe é colocado na torta de forma que sua cabeça e sua calda saiam pela cobertura da torta. Segundo a tradição, teriam surgido na Cornualha. Um pescador chamado Tom Bawcock saiu no mar revolto e pescou diferentes tipos de peixe, que foram todos incluídos na receita da torta, salvando a população local de uma fome que assolava a comunidade. É muito consumida no Natal.
Toad in the Hole: toad em inglês é sapo. O nome vem do formato da torta, que é basicamente uma massa base com as salsichas surgindo na cobertura, como se fossem cabeças de sapo surgindo de buracos (hole).
Sheperd’s pie: um recheio de carne moída e legumes, coberto com um purê de batata. Assim é feita a “torta do pastor”.
Bangers and mash: salsichas servidas com purê e um molho gravy (tipo uma borra de carne/gordura) de cebola.
Sausage roll: em português, seria um “enroladinho de salsicha”, mas a massa é típica pasty, ou seja, com manteiga e totalmente diferente da nossa massa de coxinha do enroladinho brasileiro.
Pratos doces
Sticky toffee pudding: um bolinho bem molhadinho (ou “pudim”), com um creme de toffee (açúcar ou melaço, com manteiga e farinha). Leva também tâmaras na receita e geralmente é acompanhado de sorvete de baunilha.
Eccle cakes: pequenos bolinhos em formato de disco (tipo biscoitos) recheados com cassis e polvilhados com açúcar.
Scotch pancakes: as “panquecas escocesas” lembram os discos macios de panqueca dos Estados Unidos que a gente vê nos filmes. Podem ser servidas com banana, geleias, xarope de maple (em português, acer ou bordo). Na Escócia e no Reino Unido em geral (mas também em outros países), a terça-feira de Carnaval é chamada de “Dia da Panqueca” (pancake day). Na data, a estação Kings Cross/ St Pancras costuma ser transformada em Kings Cross/St Pancake, inclusive.
Clootie dumpling: uma espécie de pudding (bolo molhado e consistente) mais picante com frutas secas. Ele é preparado dentro de uma peça de tecido e “cozido” em temperatura baixa. Serve-se a iguaria habitualmente com custard (creme com leite e ovos).
Rock cakes: pequenos biscoitos/bolinhos feitos com uma superfície bem rígida (por isso tem “pedra” no nome). Muito apreciado com chá. Pode ter frutas secas na massa.
Sanduíches
Muito consumidos por lá, geralmente se usa o pão de forma na montagem.
Há diversas variações, então não vou entrar em detalhes, mas alguns dos recheios mais famosos são egg mayo & cress (ovo cozido, maionese e uma espécie de agrião), Coronation chicken (frango, maionese, ervas e condimentos picantes), prawn mayo (à base de camarão e maionese), só para citar alguns.
Uma outra variação que eles gostam muito, aliás, é de crisp sandwich, que basicamente é um sanduíche recheado de batata frita (geralmente em disquinhos crocantes). Além da batata, pode-se complementar o prato com qualquer outro tipo de recheio.
Apesar de parecerem algo “comum”, cito os sanduíches aqui pela disseminação deles no almoço dos britânicos durante os dias de trabalho, mas também pela palavra sanduíche em si.
Pelo que se conta, a palavra sandwich como comida teria surgido graças a John Montagu, quarto conde (earl) de Sandwich, que teria tornado o “prato” popular.
Para não sair da mesa de apostas, ele teria pedido que lhe servissem carne entre duas fatias de pão. Depois disso, muitas pessoas começariam a pedir o prato igual ao do “Sandwich” (o conde), fazendo com que o nome ficasse popular.
A lista de itens não para por aí. Para que o texto não fique muito cansativo, obviamente, citei alguns daqueles mais populares que levantei.
E você, conhece algum item que deveria estar aqui? Conte pra gente!
Uma das principais coisas que ficam com o que aprendi para o texto de hoje, porém, é que o Reino Unido é muito mais rico na culinária do que eu poderia imaginar.
Talvez pelo clima, as receitas comumente envolvem tortas (pastries), que combinam muito mais com os dias frescos ou frios do que uma salada crua.
Independente disso, posso dizer que fiquei curioso para experimentar boa parte dos pratos. Só não acho que sou corajoso a ponto de experimentar haggis.
Arrivederci! 🙂
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